19 de abril de 2020

Cida

“Filha, vem aqui!”, o padrasto disse com a voz forte. Maria Aparecida estava na cozinha, cuidando do jantar da família que estava sendo preparado no fogão à lenha e, ao mesmo tempo, dando banho no irmão mais novo, em uma banheira em cima de uma velha mesa de madeira.

Cida, já imaginava o que poderia ser. Outro dia havia ouvido o padrasto conversando com a mãe e um outro homem sobre o seu destino.

“Você vai se casar, Cida”, disse o padrasto enquanto segurava os ombros da menina e olhava fixamente em seus olhos, em tom de pesar. Pesar, porque no fundo ele sabia que Cida era jovem demais para se casar. Tinha apenas 12 anos e nem havia se tornado “mocinha”.

Para Cida, sair dali daquela casa soava como uma oportunidade de se ver livre daquelas pessoas. Era a sua família, a qual ela não se sentia parte.

Joana Ferreira era bem nova quando engravidou de Cida. Tinha apenas 17 anos. O rapaz, era um negro bonito, peão, que vivia de cidade em cidade participando de rodeios. Foi na cidade de Barretos, no interior de São Paulo, onde Joana vivia, que conheceu aquele peão e acabou se deitando com ele naquela noite, após o rodeio e várias bebidas. Quando Joana soube que estava grávida, não sabia por onde andava aquele peão. Nove meses depois, nasceu um bebê negro. Era Maria Aparecida, a única negra na família dos Ferreira.

Desprezada pelos avós, Cida nunca tivera o carinho de ninguém da família de sua mãe. Joana, logo arrumou um namorado, filho de um fazendeiro rico da região. Casaram-se e bom moço do jeito que era, aceitou que a menina pretinha fosse morar com eles na fazenda. Ela tinha apenas 6 anos.

Logo, Cida assumiu algumas responsabilidades da casa. “Ela é menina, tem que saber cuidar de uma casa”, insistia o padrasto. A mãe, nunca revidava. E a criança pretinha era quem limpava a casa e fazia a comida para todos, inclusive os trabalhadores da fazenda.

Com a chegada do novo bebê na família, o quarto de Cida foi todo decorado. “Vamos colocar sua irmãzinha aqui para dormir, porque fica mais perto do quarto da mamãe e do papai. Como você já é uma mocinha, pode muito bem dormir no quarto dos fundos”, consolava Joana. A pequena pegou todas suas coisas, e foi para o quarto de hóspedes. “Aí não, Cida! Aí é o quarto de hóspedes! E quando seus avós vierem para cá? o que faremos com você? Melhor você ouvir sua mãe e ir para o quarto dos fundos. Deixa esse aí vazio pra quando vier visita!”, esbravejou o padrasto.

Assim que a irmãzinha nasceu, Cida achou que finalmente teria alguma criança para poder brincar. Nina era linda, sua pele branca como o pano das bonecas de Cida e os olhos azuis como o céu. Seu cabelo loiro e liso fascinava a pequena Cida e fazia com que ela ficasse horas e horas escovando os cabelos da irmã. Mas raramente a mãe e o padrasto a deixavam que brincasse com Nina. Nos poucos momentos em que ficavam juntas, era porque Cida tinha que dar banho ou comida para Nina. Um ano depois, veio Pedro, mais um irmãozinho para Cida. Mais uma criança para a menina pretinha, que agora tinha 8 anos, cuidar.

Com o tempo, percebeu que jamais fizera parte da família. Não tinha família. Não sabia quem era o pai e era repudiada pelos avós. O carinho que sempre sonhou em receber da mãe, ela via sendo distribuído entre os únicos dois irmãos. Sua mãe sempre a tratava como uma pobre coitada a quem fazia caridade de ter acolhido em casa. Não se sentava à mesa para comer, e nem participava dos passeios até a cidade. Quando saía, era para acompanhar a família até a igreja, onde ficava cuidando dos irmãos menores enquanto os pais se concentravam nas orações.

Um dia, após duas tentativas seguidas de fugir da fazenda, ouvira o padrasto conversando com a mãe, sobre dar um jeito de dar um futuro à Cida. E tão logo veio a notícia de que iria se casar.

Cida ainda não conhecia o noivo, mas sabia que aquela seria sua oportunidade de sair daquela casa e finalmente construir a própria família. “Sou bonita, prendada e inteligente! Tenho certeza que ele vai gostar de mim!”, confortava-se.

Finalmente o grande dia chegou. Lá estava Cida, sentada na recepção do cartório, com um vestido de cetim azul que a mãe comprara em um brechó da cidade. Ela estava contente e feliz, ao contrário de Joana que pouco sentimento esboçava. “Cida! Levante-se! Cumprimente seu noivo”, disse a mãe.

Cida levantou-se e virou-se ao mesmo tempo. Seus olhos, de alegres, refletiam o terror que gritava no coração acelerado da menina pretinha. Na sua frente, um velho de uns 70 anos, barbudo e com um chapéu de couro surrado. Usava uma camisa xadrez empoeirada e fedia suor misturado a estrume de vaca. Era José Florêncio, fazendeiro viúvo, tio do padrasto de Cida. “Ouvi dizer que ocê cozinha muito bem e sabe cuidar de uma casa que é uma beleza! Mas não me falaram que era uma cabritinha tão bonita”, sorriu o velho, deixando à mostra os poucos dentes que lhe restavam.

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