29 de abril de 2012

Sete dias

Com olhos lânguidos e entristecidos, abaixou a cabeça e fez o sinal da cruz antes de entrar naquele imenso templo. Cláudia havia chegado uns 30 minutos antes do culto começar e, até mesmo, antes de qualquer um da família.

O momento não era agradável e nada parecia ter graça. Em passos largos, caminhou em direção a terceira fileira de bancos, enquanto o som do salto batendo no piso ecoava por todo o templo, formando um batuque sem ritmo e nem melodia.

Ao passo que andava cabisbaixa, aquelas imagens desenhadas nas paredes tornaram-se vultos ameaçadores que perambulavam ao redor daquela mulher. Preferiu ignorar o próprio medo e sua descrença nos santos divinos. Dirigiu-se até a fila do canto e sentou-se próximo à parede gélida e morta. Antes que se ajoelhasse, Cláudia encarou aquela figura crucificada na parede do altar. A escultura misturava-se aos anjos e nuvens sem vida que desenhavam o teto azul em forma de abóbada.

De frente, Cláudia olhou para ele e para todas as imagens de santos que enfeitavam cada canto da igreja. Um turbilhão de imagens surgiu em sua cabeça: Eram cenas dela ajoelhada naquele mesmo banco. Cenas dela abraçando aquela caixa de metal vestida de ouro que ficava em cima de um pilar. Cenas dela chorando enquanto tocava os pés de resina do Cristo crucificado. Cenas dela fazendo o sinal da cruz, como acabara de fazer. Enquanto isso, a própria voz era murmurada no seu ouvido, cantando orações, súplicas, promessas, tudo ao mesmo tempo.

Definitivamente era um pesadelo que Cláudia queria era acordar. Cerrou os olhos fundos como se, quando abrisse novamente, fosse voltar o tempo, exatamente em 2006, com sua filha Luciana correndo pela casa, sem sentir qualquer dor. Abriu. E teve que encarar a realidade da perda da filha há exatos sete dias.

Entregue àquela situação, Cláudia deixou que seu corpo escorresse pelo banco de madeira. Seus olhos, rasos d'água olhavam para uma senhora que acabara de se ajoelhar diante daquela imensa cruz. Não sabia o que ela pedia, ou mesmo se estava ali para pedir ou agradecer. Apenas ficou imaginando as orações daquela senhora que ainda acreditava no poder vindo dos céus.

Cláudia, por outro lado, não sabia mais em que ou no que acreditar. Aprendera, ainda com pouca idade, que existia alguém lá no Céu que olhava por todos aqui na Terra. Alguém que amava e queria o bem de todos. Era aquela figura do velhinho forte e imponente, de barbas e cabelos brancos como as nuvens, sentado em uma cadeira de luz em cima de uma nuvem. A todo momento vinham anjos pedir por seus protegidos.

Mas Cláudia já não sabia se acreditava mais nesse desenho animado criado pelo senso comum. Não compreendia as ações de Deus, não sabia se acreditava em anjos. E o câncer de sua filha aos 12 anos de idade fez com que Cláudia, não somente se apoiasse na igreja católica, mas também procurasse outras religiões e doutrinas em busca de cura e de explicações.

Cláudia também passou a desacreditar no homem. Médicos e mais médicos falando incessantemente que o osteosarcoma – câncer no fêmur - de Luciana não tinha mais cura, fez com que ela procurasse curandeiros, plantas medicinais, simpatias, ervas, chás, medicina alternativa e tratamentos ainda em fase de teste.

Se apegou a qualquer coisa ou ser que poderia significar uma única chance que salvasse a vida da filha. E agora, Cláudia, argumentava com Ele, em pensamentos, que nada adiantou, tudo foi em vão.
Luciana se foi com apenas 15 anos, a poucos dias de completar 16. A princesa da família se mostrou uma fortaleza, aguçou a esperança no coração de cada um dos Séne, de forma com que todos acreditassem que ela venceria o câncer. E a todo tempo Cláudia esteve ao lado dela, sofrendo e sentindo dor, junto com Luciana.

A menina adoeceu, perdeu uma perna, e sua aparência era cada vez menos promissora. Ao mesmo tempo, sem que a própria Cláudia notasse, ela também adoeceu. Não se preocupou mais com a aparência: seus cabelos estavam presos, descuidados e com alguns fios rebeldes soltos. Os olhos, eram envoltos por marcas escuras e fundas. A boca, pálida, quase da mesma cor da pele amarelada, compunha o visual desdeixado. O corpo era curvo como se fugisse de alguma coisa. Suas roupas, não mais coloridas ou florais. Cláudia usava um vestido em tom pastel e um casaquinho de lã preta. A mulher não tinha mais vaidade.

Ela levantou-se assim que alguém tocou-lhe o ombro. Era o único filho que tinha agora, Lucas. Atrás dele estava o marido, Ivan. Cláudia apenas sorriu. Um sorriso sem graça, enquanto um senhor de meia idade começou a pronunciar algo lá na frente, no altar.

Cláudia aprendeu nesses últimos quatro anos que existem outros valores na vida. Aprendeu outros significados para família, marido, filhos, religião, medicina e união. E agora estava diante das únicas duas pessoas que faziam com que a vida de Cláudia tivesse um novo sentido. E os três ficaram ali, em meio a parentes, amigos, conhecidos, amigos de Luciana que também tinham câncer. Todos ouvindo o padre falar durante quase uma hora, na missa de sétimo dia de falecimento de Luciana.